Testemunho de uma neta
“Ó, filha, o que é que tu me és?”. Esta era uma pergunta muito frequente que a minha avó me fazia já num estádio muito avançado da doença. Porém, desenganem-se se acham que esta pergunta era motivo de tristeza. Esta pergunta dava origem a um jogo. Eu respondia-lhe: “Então, quem é que tu achas que eu sou? Corríamos os parentescos familiares todos, com os nomes das pessoas, para ela se ir lembrando, e, no final, ela dizia: “Ah, pois és minha neta!”. E riamos. E é esta mensagem que vos queria passar. Que mesmo em estádios mais avançados pode haver momentos divertidos. Tal como em tudo na vida: há sempre bons momentos e momentos menos bons, mesmo quando não estamos doentes.
A minha avó foi diagnosticada com DP já uma jovem entradota, com oitenta e alguns. Fomos apanhados de surpresa. Pouco sabíamos sobre aquela doença. E, antes de entrar em pânico, procurarmos informação. Tivemos alguma dificuldade. Há muito informação falaciosa na internet. Felizmente, a Associação Portuguesa de Doentes de Parkinson ajudou-nos a conhecer melhor a doença. Frequentámos um curso de cuidadores, que nos deu ferramentas e dicas para saber lidar melhor com a sintomatologia dos doentes e a saber o que poderia esperar. O conhecimento é uma das nossas melhores ferramentas enquanto cuidadores, pois podemos procurar sinais de alerta e compreender melhor as alterações motoras e não motores pelas quais um doente pode passar.
As dicas, por exemplo, para como saber ajudar um doente a iniciar a marcha quando este bloqueia: podemos, por exemplo, colocar o nosso pé um pouco à frente do dele, e ele dará um passo e assim sucessivamente até ele conseguir reiniciar a marcha sem a ajuda. E sabiam que a maioria das pessoas que sofre de DP quando anda de bicicleta ou dança é como se não tivesse qualquer sintoma? Por isso, dancem muito!
A minha avó não era doente de Parkinson. A minha avó também era doente de Parkinson. Em estadios mais avançados, por vezes, nós cuidadores ficamos tão centrados em cuidar dos nossos doentes (é dar os comprimidos a tempo, é tentar que fiquem confortáveis, é levar para a fisioterapia, é comer coisas saudáveis), ficamos tão focados na doença que nos esquecemos do “também”. E é nesse “também” que reside a pessoa, e não a doença. É aí que residem os bons momentos.
A minha avó era uma costureira exímia e até aos últimos dois anos da sua vida, nos quais a doença evolui para estadios mais avançados, foi sempre muito activa. Aos oitenta e muitos ainda, já com DP, ia para a Feira da Ladra de autocarro para vender as malas e os chapéus que fazia. Nos estadios mais avançados, por vezes, torna-se difícil aceitar a doença, torna-se difícil aceitar a ajuda para realizar as tarefas mais básicas. Não vos mentirei. Há dias que não são fáceis. Porém, tal como na vida, há dias que não são fáceis. Há dias assim, há dias assado, há dias nim e depois há aqueles dias que nos ficam guardados no coração. Esses são os dias extraordinários. Por exemplo, nos momentos em que vinha para a sala, ela e a minha mãe dançavam um bocadinho. Era muito divertido.
A minha avó era a melhor do mundo! A minha avó não era doente de Parkinson. A minha avó também era doente de Parkinson, porque a doença nunca a definiu!
Autora do texto: Ana Botas